A percepção geral sobre a ascensão militar chinesa tem sido marcada, nos últimos anos, por uma combinação de projeção econômica, modernização acelerada de meios e uma retórica cada vez mais assertiva no Indo-Pacífico. Contudo, novas evidências apontadas por análises recentes do Politics Today e do Asia Times — baseadas em dados do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) — indicam que essa trajetória pode estar enfrentando um ponto de inflexão. Pela primeira vez em décadas, as principais empresas de defesa da China registraram queda significativa na produção e nas receitas, contrariando a tendência global de expansão do setor. Mais do que um tropismo econômico, trata-se de um sintoma de fragilidade estrutural no “modelo chinês” de poder militar.
Segundo dados do SIPRI, a retração de cerca de 10% nas receitas combinadas das principais empresas estatais de defesa chinesas em 2024 contrasta com o crescimento recorde das vendas globais do setor, que ultrapassaram US$ 679 bilhões. Gigantes como Norinco, AVIC e CASC sofreram reduções expressivas em sua produção e atrasos em programas estratégicos. Curiosamente, tal redução não decorre de cortes no orçamento militar — que continuou a crescer — mas de uma intensa purga anticorrupção desencadeada pelo governo Xi Jinping. Essa ação, embora oficialmente centrada em “corrigir distorções”, produziu descontinuidade administrativa, cancelamentos de contratos e uma revisão compulsória de processos industriais essenciais para a cadeia bélica.
O que emerge, portanto, vai além da dimensão financeira: revela-se um problema profundo de governança. A China construiu seu complexo industrial de defesa sobre um tripé de controle político, economia estatal e cadeias de comando rígidas. Tal arranjo permitiu ganhos rápidos quando a prioridade era modernizar equipamentos e ampliar o portfólio de sistemas estratégicos. Contudo, esse mesmo arranjo se mostra extremamente vulnerável quando submetido a estresses organizacionais — como investigações, expurgos e centralização exacerbada. O resultado é um sistema incapaz de se autorregular, dependente de sinais políticos e sensível a interrupções internas.
O Asia Times, ao analisar essa crise, vai mais longe. Argumenta-se que o “apodrecimento” da máquina militar chinesa não é conjuntural, mas consequência direta de décadas de práticas informais, redes de patronagem e critérios políticos que frequentemente suplantam critérios técnicos. O efeito prático é o surgimento de um “poder militar de fachada”, no qual desfiles e declarações grandiosas disfarçam fragilidades organizacionais.
Em um cenário de conflito de alta intensidade — como um eventual confronto envolvendo Taiwan — falhas de comando, problemas logísticos, baixa moral e deficiências técnicas poderiam emergir de forma abrupta. Em outras palavras: nem todo o poder exibido é poder empregável.
Essa interpretação tem implicações estratégicas que extrapolam o ambiente asiático. Primeiro, expõe um risco real na suposição de que aumentos orçamentários se traduzem automaticamente em força militar efetiva. O caso chinês demonstra que poder militar não é apenas questão de recursos, mas de instituições, processos e quadros qualificados — fatores que não podem ser improvisados. Segundo, abre uma janela de oportunidade para países que disputam espaço no mercado global de defesa, uma vez que atrasos em programas chineses podem levar clientes internacionais a buscar alternativas mais confiáveis.
Do ponto de vista brasileiro, o episódio traz lições importantes. A Base Industrial de Defesa e Segurança (BIDS) — historicamente resiliente, diversificada e marcada por crescente profissionalização — reforça sua relevância como ativo estratégico nacional. Em um contexto geopolítico de incerteza, países que demonstram capacidade de oferecer produtos e serviços de defesa com governança sólida podem se beneficiar tanto comercial quanto diplomaticamente. Para instituições financeiras especializadas, o cenário evidencia a importância de incentivar projetos industriais que combinem inovação, compliance rigoroso e escalabilidade — atributos que aumentam a confiança de parceiros internacionais e reduzem riscos sistêmicos.
Por fim, a crise chinesa devolve ao debate estratégico uma reflexão clássica: o verdadeiro poder militar de uma nação não reside apenas nos números apresentados, mas na qualidade de seus processos decisórios, na integridade de sua cadeia de comando e na maturidade de sua indústria.
Quando esses elementos falham simultaneamente, até mesmo um gigante pode revelar pés de barro. A China permanece uma potência formidável, mas os sinais revelados em 2024 e 2025 sugerem que seu caminho rumo à superioridade militar enfrenta desafios internos mais profundos do que se imaginava.
Se a comunidade internacional observar apenas o hardware, perderá metade da história. O que realmente definirá o futuro do poder chinês será a capacidade — ou incapacidade — de reconstruir a confiança institucional no coração de sua máquina de guerra.
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