Enquanto o capital europeu se reorganiza para financiar sua indústria bélica, o mercado brasileiro assiste passivamente. Está na hora de a BIDS BR entrar no radar dos investidores nacionais e estrangeiros?
1. A Emergência dos ETFs de Defesa como Classe de Ativo Estratégica
Nos últimos dias, o mercado financeiro europeu presenciou um movimento que marca uma inflexão histórica: o lançamento e a captação acelerada de ETFs (Exchange Traded Funds) com foco exclusivo na indústria de defesa. Instituições financeiras de peso, como a BlackRock, BNP Paribas Asset Management e a Amundi, passaram a oferecer ao público investidor fundos que replicam índices compostos por empresas fabricantes de armas, sistemas eletrônicos de defesa, munições de precisão e plataformas de comando e controle.
Essa mudança reflete uma demanda crescente por ativos que combinem resiliência, alta previsibilidade de receita e alinhamento geopolítico. Os números são contundentes: até maio de 2025, investidores globais já alocaram mais de US$ 8,4 bilhões em ETFs de defesa, sendo que US$ 2,7 bilhões estão alocados apenas em fundos europeus. Trata-se de um crescimento explosivo, que mais que dobra o volume captado em todo o ano de 2024. O setor, antes considerado “sensível” ou até “impróprio” para carteiras institucionais, agora passa a ser valorizado como uma aposta legítima frente à instabilidade mundial.
Por trás dessa tendência está a consolidação de uma nova lógica nos mercados: o entendimento de que a segurança nacional passou a ser também um ativo financeiro. A previsibilidade de contratos públicos, o aumento dos orçamentos militares nas nações da OTAN e a disposição política de investir em inovação militar — inclusive via inteligência artificial, guerra cibernética e armas hipersônicas — tornam as empresas de defesa vetores de crescimento de longo prazo. Nesse contexto, os ETFs funcionam como canais eficientes para democratizar o acesso do investidor médio a esse setor, até então restrito a fundos especializados ou grandes gestoras de private equity.
2. A Retórica da Soberania e o Fortalecimento da Indústria Europeia de Defesa
O ressurgimento dos ETFs de defesa europeus está diretamente conectado a um movimento mais amplo de redefinição do papel da Europa no cenário geopolítico internacional. A guerra na Ucrânia, o avanço russo em zonas de influência pós-soviéticas, o expansionismo militar chinês e a incerteza sobre o comprometimento futuro dos Estados Unidos com a OTAN têm impulsionado o discurso da “autonomia estratégica” no continente europeu.
Diante desse novo ambiente, a União Europeia tem promovido uma política de reindustrialização da defesa, incentivando que os Estados-membros fortaleçam sua base industrial local. Isso inclui investimentos diretos, subsídios à inovação dual-use (uso civil e militar), compras coordenadas entre países e agora, com mais força, a mobilização dos mercados de capitais via produtos financeiros como os ETFs.
Esses fundos, por sua vez, estão sendo estruturados para canalizar capital privado diretamente para empresas estratégicas europeias como Thales (França), Leonardo (Itália), Rheinmetall (Alemanha), Saab (Suécia) e a própria Airbus Defence & Space, que atua de forma transnacional. É o que chamamos de “financiamento soberano via mercado”. Trata-se de um instrumento híbrido, em que se busca, simultaneamente, retorno financeiro e fortalecimento da soberania industrial.
Curiosamente, esse fenômeno coincide com uma flexibilização das diretrizes ESG (Ambiental, Social e Governança), que antes vetavam investimentos em armamentos. Fundos como o PFA da Dinamarca, tradicionalmente restritivos em relação à indústria bélica, começaram a reincluir ativos de defesa em seus portfólios, diante da compreensão de que a segurança nacional é também uma dimensão legítima de responsabilidade social e institucional. O mercado parece estar descobrindo que a paz — e a própria democracia — depende de investimentos contínuos em capacidade dissuasória.
3. Implicações para o Brasil e a BIDS: Um Chamado à Reflexão Estratégica
Enquanto Europa, EUA e até mesmo países asiáticos começam a utilizar seus mercados de capitais para estruturar o financiamento da indústria de defesa, o Brasil segue excessivamente dependente do Orçamento Geral da União (OGU), de incentivos do BNDES e de medidas pontuais, muitas vezes burocráticas e sujeitas a contingenciamentos. Isso cria uma assimetria competitiva que fragiliza a Base Industrial de Defesa e Segurança (BIDS) brasileira, tanto no plano doméstico quanto no cenário internacional.
A experiência europeia com ETFs demonstra que é possível construir instrumentos financeiros que ofereçam retornos previsíveis ao investidor e, ao mesmo tempo, reforcem a soberania tecnológica e a capacidade de produção nacional. O Brasil possui ativos estratégicos valiosos — desde empresas certificadas como ED/EED (como Embraer, Avibras, SIATT, Mac Jee) até projetos avançados como o VLM (veículo lançador de microssatélites), o Satélite Amazônia-1 e o Gripen NG com transferência de tecnologia. Tudo isso poderia, ao menos em tese, ser transformado em base de fundos de investimento setoriais, incluindo ETFs, FIPs e até instrumentos tokenizados, com lastro em contratos futuros e capacidade instalada.
Além disso, o Ministério da Defesa, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o BNDES poderiam liderar uma coalizão institucional voltada para criar marcos regulatórios e incentivos fiscais para fundos de defesa, facilitando seu acesso ao mercado. Um ETF brasileiro de defesa — focado em empresas nacionais listadas na B3 — ou um fundo setorial fechado em parceria com entes soberanos estrangeiros, como já ocorre com os países árabes, poderia ser um ponto de inflexão.
Esse é um chamado à ação. A geopolítica do século XXI não será vencida apenas com discursos — ela exigirá capital, tecnologia e inteligência financeira.
Referências
- Reuters. Global investors launch Europe defence funds to profit from rearmament
- Financial Times. UK military to unify cyber and electronic warfare
- Financial News London. Can ESG funds still ignore defence stocks?
- Bloomberg, Defense News, e CB Insights.
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