A recente visita do presidente Donald Trump à Arábia Saudita foi um movimento diplomático com reverberações muito além da política bilateral. O anúncio de um pacote de acordos comerciais e militares da ordem de US$ 600 bilhões marcou não apenas uma inflexão na relação entre Washington e Riad, mas também o nascimento de um novo modelo de parceria geoestratégica, que combina vendas militares com transferência tecnológica e, sobretudo, cooperação no desenvolvimento de tecnologias de uso dual, com destaque para a inteligência artificial (IA).
“Hoje, esperamos oportunidades de investimento no valor de US$ 600 bilhões, incluindo acordos no valor de US$ 300 bilhões assinados durante este fórum”, afirmou o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman , líder de fato do reino, em um discurso durante uma sessão do Fórum de Investimentos EUA-Arábia Saudita, realizada em Riad por ocasião da visita de Trump. “Trabalharemos nos próximos meses na segunda fase para concluir acordos e elevá-los a US$ 1 trilhão”, completou.
Essa transformação muda a lógica tradicional das alianças no Oriente Médio, baseadas no fornecimento de armas e garantias de segurança, e inaugura um paradigma mais sofisticado: o da interdependência tecnológica, da coprodução de capacidades militares avançadas e do alinhamento estratégico em áreas críticas da quarta revolução industrial.
1. Os Acordos de Defesa: Mais que Vendas, um Pacto de Integração
O pacote anunciado durante a visita inclui uma impressionante gama de sistemas defensivos e ofensivos:
- Sistemas de defesa antimíssil THAAD e Patriot;
- Aeronaves táticas, helicópteros UH-60 Black Hawk com montagem local;
- Veículos blindados, tanques M1 Abrams, munições de precisão;
- Equipamentos de ciberdefesa, comunicação criptografada e satélite militar.
A dimensão desses acordos (com um componente inicial imediato de US$ 110 bilhões) não reside apenas no volume financeiro, mas no modelo de relacionamento estabelecido: os EUA se comprometeram a facilitar a formação de capacidades industriais sauditas por meio de joint ventures e programas de offsets, obrigando as empresas contratadas a realizar parte da produção localmente e a treinar quadros técnicos sauditas.
Esse modelo de “industrialização por transferência de defesa” é estratégico para a Arábia Saudita em sua Visão 2030, que busca reduzir a dependência do petróleo e transformar o país em um hub regional de tecnologia e inovação.
2. Inteligência Artificial e Defesa: IA como Força de Projeção Estratégica
Talvez o aspecto mais transformador da parceria seja a convergência em torno da infraestrutura de IA para segurança e defesa, que envolve:
- Instalação de data centers estratégicos operados por Amazon Web Services e Google;
- Parcerias com empresas como Raytheon Technologies, Palantir e Booz Allen Hamilton;
- Criação de centros de comando baseados em análise preditiva e inteligência de sinais;
- Cooperação na automação de vigilância, reconhecimento facial e mapeamento de comportamento.
A Arábia Saudita se posiciona, assim, como um laboratório para tecnologias que moldarão o campo de batalha do futuro — caracterizado por velocidade algorítmica, guerra cibernética e operações autônomas. Para os EUA, a vantagem está em testar e disseminar essas tecnologias em uma região crítica, mantendo o controle dos protocolos de operação, dos dados e dos padrões de interoperabilidade.
É uma forma moderna de soft power tecnológico: os EUA não apenas fornecem tecnologia, mas moldam o ecossistema operacional dos seus aliados.
3. Implicações Geoestratégicas: O Renascimento de Riad como Polo de Poder
Essa reconfiguração confere à Arábia Saudita um papel que ultrapassa o de simples comprador de armas. O país se torna:
- Um nó de comando regional para tecnologias defensivas ocidentais;
- Um estabilizador por dissuasão, dotado de capacidades tecnológicas próprias;
- Um parceiro relevante na definição dos padrões éticos e operacionais da IA militar.
Para o Irã, essa aliança representa um aumento no cerco tecnológico e uma pressão por modernização. Para Israel, cria-se uma dinâmica ambivalente: uma Arábia Saudita mais forte pode representar risco, mas também um contrapeso ao Irã. E para a China e a Rússia, essa relação sinaliza que os EUA ainda são o ator com maior capacidade de agregar segurança e tecnologia de forma integrada.
Trata-se, portanto, de uma nova arquitetura regional, onde a presença física é substituída pela presença digital, técnica e doutrinária — um modelo que tende a ser replicado com outros aliados estratégicos dos EUA, como Emirados Árabes Unidos, Polônia e Japão.
4. Riscos e Dilemas Éticos: Quem Controla a IA na Guerra?
Apesar dos ganhos, o novo paradigma traz riscos estruturais:
- Militarização da IA sem governança global, com uso potencial para repressão interna;
- Distorções no equilíbrio regional, caso a Arábia Saudita se torne hegemonia desestabilizadora;
- Dependência tecnológica disfarçada de autonomia, com código-fonte e atualizações controladas por Washington.
Além disso, há questões cruciais sobre o uso ético da IA: quais são os limites para o reconhecimento automatizado de ameaças? Quem é responsável por falhas autônomas em combate? Essas perguntas ainda não têm respostas consistentes, e os acordos firmados não impõem salvaguardas claras nesse sentido.
5. Oportunidades e Lições para o Brasil
A parceria EUA–Arábia Saudita, centrada na defesa e na inovação tecnológica, oferece ao Brasil uma série de lições estratégicas e caminhos possíveis. Embora os contextos político-econômicos sejam distintos, a lógica de usar acordos de defesa como vetor de desenvolvimento industrial e tecnológico tem paralelos relevantes:
5.1 Lições estratégicas
➤ Alinhamento entre política de defesa e política industrial
O caso saudita mostra como decisões de defesa podem ser utilizadas para impulsionar setores tecnológicos nacionais. O Brasil precisa integrar sua Estratégia Nacional de Defesa com uma política industrial orientada à inovação, especialmente em áreas como IA, ciberdefesa, automação e sensoriamento.
➤ A coprodução como mecanismo de soberania
A Arábia Saudita exige que parte das tecnologias adquiridas sejam produzidas localmente. O Brasil pode adotar esse modelo de offsets mais agressivo, buscando não apenas conteúdo local, mas também domínio técnico, licenciamento e geração de propriedade intelectual compartilhada.
➤ Construção de infraestrutura nacional de IA aplicada à defesa
O uso da IA em defesa vai além do software: exige centros de dados soberanos, redes seguras e algoritmos treinados com dados locais. O Brasil deve investir nessa infraestrutura com apoio das Forças Armadas, universidades e empresas estratégicas.
➤ Necessidade de marcos éticos e legais para IA militar
A militarização da IA exige debate público, jurídico e técnico. O Brasil precisa estabelecer diretrizes sobre uso de IA autônoma, proteção de dados militares, e responsabilidade em caso de falhas — antes que essas tecnologias estejam em uso pleno.
5.2 Oportunidades Geopolíticas e Industriais
➤ Desenvolver e exportar plataformas autônomas leves
O Brasil tem expertise em aeronaves leves, veículos terrestres e sistemas navais — áreas com alto potencial de incorporação de IA. Investir em plataformas com autonomia tática embarcada (drones, VANTs, UGVs) pode posicionar o país como fornecedor alternativo para nações do Sul Global.
➤ Fortalecer laços com países do Golfo em defesa e tecnologia
A Arábia Saudita tem buscado diversificação de fornecedores, inclusive fora do eixo EUA–Europa. O Brasil pode oferecer cooperação em áreas como simulação, satélites de órbita baixa, biotecnologia militar e segurança de fronteiras.
➤ Implantar um Fórum Brasileiro de Inovação em Defesa (FBID)
Em vez de depender de centros decisórios governamentais, o Brasil pode criar seu próprio fórum para promover inovação em defesa com foco em IA, cibersegurança e tecnologias emergentes — fortalecendo a indústria local e a interoperabilidade entre as Forças e mesmo entre países vizinhos.
Essas ações não exigem rupturas, mas visão estratégica, continuidade política e articulação entre Defesa, Ciência e Tecnologia e Relações Exteriores. O Brasil pode, e deve, aprender com a experiência saudita — adaptando-a às suas realidades e objetivos de autonomia.
6. Conclusão: O Século XXI e a Guerra das Infraestruturas
A visita de Trump à Arábia Saudita foi muito mais do que um gesto político — ela revelou como os vetores de poder no século XXI estão migrando do território físico para o território digital, da força bruta para a capacidade computacional. As alianças do futuro não serão apenas comerciais ou militares. Serão alianças de infraestrutura, dados, algoritmos e padrões operacionais.
Para países emergentes como o Brasil, compreender esse novo paradigma nãohttps://loja.uiclap.com/titulo/ua73816/ é apenas uma questão de segurança, mas de soberania tecnológica. O mundo caminha para uma nova corrida armamentista, invisível, automatizada e cibernética — e só estará no jogo quem dominar, integrar e proteger sua própria arquitetura de poder digital.
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